
Minha filha mais nova e o namorado dela eram duas crianças de 11 anos quando o filme Saneamento Básico, de Jorge Furtado, foi lançado. Hoje ambos têm 29 e assistiram, pela primeira vez, a essa comédia irresistível que voltou a ganhar projeção e que a eles pareceu uma obra estimulante e nova – e é mesmo.
Roteiro e texto naturalmente inteligentes, direção sem tomadas vertiginosas, atores espetaculares que se divertem em cena. A eficiência da verdade, a simplicidade rindo na cara da tecnologia. Não é que ainda funciona. Não só funciona, como se tornaram urgentes: elas, as qualidades espontâneas.
Uma rápida digressão: todos nós somos meio loucos de nascença. Como é que se tolera a ideia de que iremos morrer de uma hora para outra, sem saber quando? Explica-se o sucesso da religião, que procura nos consolar, ainda que eu prefira a filosofia, que nos ajuda a entender. Entre uma e outra, nos resta dar algum significado à vida, investindo em amigos, amores, filhos, trabalho, livros, cinema, música.
Antigamente, isso bastava para manter a saúde mental, mas agora complicou. Aquele mundo que ficava do lado de fora de casa arrombou a porta e se sentou no nosso colo. Temos o à intimidade de qualquer morador de Hollywood. Opinamos sobre medicina antroposófica e sobre os hábitos sexuais dos aborígenes como se fôssemos especialistas.
Assistimos a vídeos que foram roteirizados, gravados, regravados, editados e que circulam como se fossem produto da casualidade. Consumimos toneladas de mentiras. Rolamos feeds e stories para ar o tempo, permitindo que conselhos de sei-lá-quem nos atinjam 50 vezes ao dia. Não há como fugir, fomos sugados pela sabedoria duvidosa de estranhos. Dar sentido à vida da forma que conhecíamos (amores, trabalho...) parece preguiça, agora a gente tem que buscar um significado digital de longo alcance.
Então ressurge do ado um filme que enaltece justamente o amadorismo, e nos lembra que continuamos absolute beginners, iniciantes que se realizam, mesmo, é através do amor, como diz a música de David Bowie: “Enquanto estivermos juntos, o resto pode ir para o inferno”. Houve uma época em que uma única presença era mais valiosa que um milhão de seguidores.
Os profissionais das redes são apenas diletantes tentando faturar algum, o que é legítimo, mas não são deuses. Menos idolatria, portanto. Menos bajulação. Estamos todos no mesmo barco, bilhões de aprendizes que jamais chegarão a um consenso universal, nem ao cerne de coisa nenhuma. Que tal voltarmos a assumir que somos nada além de amadores bem-intencionados? Se continuarmos reverenciando apenas a alta performance, sucumbiremos de vez ao delírio. Meio loucos já somos.